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quarta-feira, 19 de julho de 2006

Vias e musas

A República do Líbano é uma rua localizada no Saara, grande centro de comércio de tudo que se possa imaginar, no Centro do Rio de Janeiro. Fica próxima do Campo de Santana e é, secretamente, palco de uma batalha invisível entre duendes mercadores de quinquilharias e pombos carnívoros inteligentes, que, no intervalo de seus ataques e saques aos depósitos dos pequeninos comerciantes, planejam uma grande trama para acabar com a humanidade e dominar o mundo.

Em São Paulo, existe outra República do Líbano e esta também fica próxima de um parque. Na verdade, ela corta o enorme Ibirapuera, deixando uma lasquinha deste separada do restante. "Oras, é apenas um pequeno pedaço. O que é isso em nome do progresso?", pensou um político quando autorizou tal obra. Sim, apenas um pequeno pedaço, mas o que ele não sabia é que, naquela pontinha que virou uma pequena e tristonha praça, morava uma ninfa.

A ninfa costumava se banhar no lago e, enquanto se esfregava com uma bucha feita de plantas e musgo, filtrava as impurezas das. Quando se cansava, voltava para uma árvore que sempre serviu de abrigo nas horas que separam a aurora da alvorada, e, lá dentro daquele grande tronco, dormia tranquila.

Havia no parque um fauno que muitos temiam, pois era muito feio e tinha um semblante grave, além de ser guardião e protetor de tudo que lá existia. Morava dentro de uma grande pedra e quem o via dizia parecer um quadro vivo de Portinari, que tinha uma testa enorme e um pequeno chifre pontudo que nascia entre dos dois olhos. Escondido dos olhos daqueles que não enxergam o que é fantástico, ele rondava o parque durante todas as horas para impedir que fosse violado por pessoas desrespeitosas e com maldade no coração.

Sempre que o fauno sentava na sua rocha para descansar, observava de longe o banho da ninfa. Enquanto a água outrora límpida corria pela pele translúcida da sua musa, ele, inspirado, tocava a flauta que havia feito quando mais novo. Achava que a ninfa não o escutava e que nem sabia que ele existia, mas ela sempre se demorava um pouco mais na água, para poder ouvir um pouco mais da bela música que o grotesco ser tocava. E aquela música a fazia imaginar, com os olhos fechados e o lábio entre os dentes, como seria delicioso entregar seu corpo para aquele ente, que, aos seus olhos, era o mais belo de todos os seres.

Então vieram os monstros de ferro cuspidores de fumaça negra, e os homens brutos que montam essas bestas, as mandavam derrubar pedra, árvore e tudo mais pela frente. O fauno pegou sua clava e seu escudo de madeira viva e se preparou para a guerra, mas os homens foram perversos e trouxeram símbolos mágicos feitos por feiticeiros de uma terra distante, que impediam o protetor do parque de se aproximar. De longe, nada pôde fazer enquanto uma besta negra cuspia asfalto sobre o solo do seu lar.

A noite, ao tocar um lamento sobre a rocha, percebeu que a ninfa não mais voltaria para se banhar, pois atravessar a faixa dos humanos significaria abrir mão da sua imortalidade e deixar de ser imortal, assim como ele deixaria de ser fauno se o mesmo fizesse. Mas, por mais que lhe cortasse a alma pensar em deixar seu ofício e sua natureza, seu coração não mais aguentava de saudades. Que virasse humano, mas não podia viver mais sem vê-la.

Colocou o pé para fora do parque e viu casco virar pé, viu os pelos caírem de suas pernas que deixaram de ser tortas como as de um bode. Quando saiu por completo, passou a mão no rosto e sentiu que o chifre havia se tornado apenas um calo protuberante. Não pensou em voltar para ver se a transformação se desfazia; correu em direção a praça, onde ficava a árvore habitada pela ninfa.

Não se sabe direito o que aconteceu naquela noite, mas as pessoas que frequentam o parque já viram um homem feio e de semblante severo passando de bicicleta pelo parque, com um garrafão de água amarrado na garupa (que ele enche em segredo no próprio lago), diversas vezes por dia. A noite, dizem, ele se senta numa fonte desativada ao lado da praça e enche esta com a água dos garrafões e, aparentemente sozinho, toca na sua flauta uma melodia feliz.

"Christmas 1998
I tried to call
I just couldn't wait
And your message was out of date
So I left my voice on your machine
But you did not respond
OK OK OK you've won
You make me feel so low"

Porcupine Tree, Feel so low

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